29Abr

À noite, uma clareza miúda rasgava o breu do céu. A lua, tímida, sorria levemente sob as nuvens negras. Era a aurora mais triste e o anúncio estava feito: o curso dos acontecimentos não era animador.

Gritos ensurdecedores preenchiam o pátio do hospital. No portão de acesso à maternidade, uma jovem mulher com o seu kimbundu atabalhoado, dizia repetidas vezes «songa dya mam’etu». Maria VaiComTodos, a mandongo do Bairro Malanjino, já não se aguentava de tanta dor. As suas pernas grossas de embondeiro perderam o gingado e o bronzeado daquele corpo soberbo que ostentava, nem um passo conseguia marcar. Da sua intimidade, uma vida espreitava a existência. VizinhaNzala, a anciã que acompanhava Maria VaiComTodos, vislumbrava um futuro ácido para a jovem grávida.

A expressão facial do rosto esbelto da Maria VaiComTodos ganhava metamorfoses coléricas. O assombro instalou-se e ninguém conseguia acalmá-la. Choro e dizeres compunham a canção que dos lábios da mandongo emergia. Filhadaputava-os a todos.

– Nzambi ya mbungu, matuba dye – olhando para o céu negro, ofendia freneticamente a «Deus» por quem, quando criança, um dia fora baptizada e crismada na Igreja do Carmo. Para ela, Deus era um ser injusto por ter dado a Eva a dor de parto como consequência do pecado mortal.

Maria VaiComTodos ganhou consciência da sua liberdade, adoptou o feminismo como sua religião e via na figura de Jeová um ser confuso, que sempre alienou a emancipação e o empoderamento das mulheres. Postergara o nome TeresaDeCalcutá, seu nome de baptismo, e adoptara Maria VaiComTodos para romper com a educação religiosa que o seu pai, um católico devoto, lhe transmitiu. Deus mazé era um frouxo ciumento que invejava a Eva por ter devorado Adão sem o partilhar. Só o papá e os seus irmãos dogmatizados não enxergam isso, pensava entre suspiros.

 – O prazer, às vezes, produz frutos amargos. Do outro lado do hospital, o afamado maluco OndjakiTransparente gargalhava aos berros enquanto olhava levemente para Maria VaiComTodos. Insólito, acomodado debaixo da casuarina, no escuro, OndjakiTransparente folheava distraidamente um romance histórico acabado de ser publicado no Auditório Pepetela, do Centro Cultural Português.

No coração da maternidade, a negrura da noite acomodava-se entre uma gravidez e outra. Por alguns instantes, houve silêncio. Absorta nos seus pensamentos, Maria VaiComTodos sorria com ternura. A dor de parto parecia evaporar-se. O sorriso era sincero e poético. Depois de respirar com sofreguidão, caminhou em direcção a OndjakiTransparente e abraçou-o com brandura.

– Serás o pai da minha filha. Disse, troçando.

– Não há nada mais poético do que estar com o amor da nossa vida – OndjakiTransparente sussurrou-lhe ao ouvido e com a cabeça acenou positivamente à ordem dela. A luz da ambulância que saía da maternidade iluminou o rosto do maluco. Maria VaiComTodos, entregue ao abraço reconfortante e, ao inclinar-se um pouco, conheceu o rosto do maluco perfumado que a confortava silencioso. Este maluco poeta deve ser filho de um mundele lindo, pensou enquanto observava os detalhes da figura impoluta que abandonara os seus olhos aquosos sobre o seu corpo disforme pela gravidez.

– Como te chamas?

– OndjakiTransparente! – A um palmo de distância, respondeu um senhor com cerca de 57 anos de idade, que os observava atentamente. ÁguaLustro era um prosador angolano que, vindo de Portugal, estudava cuidadosamente OndjakiTransparente para o seu novo romance, cujo protagonista seria uma cópia do jovem maluco.

– O que é que um exímio escritor está fazer com um bloco de notas no escuro? – Indagou Maria VaiComTodos sorridente e curiosa.

– Ondjaki é o único amigo transparente que a minha terra me deu. Sabe, a pretensa democracia que paira no nosso musseque fez-nos artistas.

– Sei muito bem o que dizes. Afinal, és dos poucos escritores que o poder político ainda não conseguiu corromper.  Mas o embaixador diz que és um tuga invejoso que sem fundamentos contesta o partido que nos governa.

– Estás a falar do EmbaixadorGanhosIntangíveisDaPaz?

– Sim, esse mesmo – desatou a rir.

– Este é o nosso futuro, a ditadura da ganância? – Enfeitiçado, OndjakiTransparente, que por alguns minutos esteve silencioso, encontrava-se, agora de pé, a reflectir em voz alta sobre a última frase do romance Se o Passado Não Tivesse Asas, que acabava de folhear.

A pergunta parecia fazer sentido para ÁguaLustro, observador atento que captava momentos fugazes e dava-lhes intemporalidade nos seus romances. A quase quinhentos metros de distância, do lado de lá, gente importante a passos ensaiados riscavam o chão de mármores de um salão adornado. Ao longe, inacreditavelmente, ouvia-se o semba Bajú, animando a festa milionária que OndjakiTransparente fingia não ter lucidez para dizer quem era o aniversariante.

Do lado de lá, ao contrário do da maternidade, o céu do dia 28 de Agosto era outro. O tempo não parecia negro nem tempestuoso. Havia nuvens multicolores em perfeita harmonia com a Superlua dançante. Os homens de lá compravam tudo, até a vontade de Deus. O seu maior eleitorado estava nas igrejas dos líderes que no preciso instante saboreavam champanhe francês. O gosto do champanhe tinha duplo sabor: o da idade avançada do aniversariante e o da vitória nas urnas.

VizinhaNzala cuspia olhares vorazes, ameaçadores. Maria VaiComTodos estava entretida de mais para perceber os olhares reprovadores. Deus foi infeliz quando planeou o mundo – pensou a anciã. Gotas de sangue caíam sobre os pés inflamados da Maria VaiComTodos. A prosa estava boa e o sangue e as dores já não a incomodavam. Os três, sentados debaixo da casuarina, falavam sobre o século das luzes e a escuridão que teimava em cantar nos salões da África do século XXI.

– Como se vai chamar a nossa filha?

– Langidila! – Respondeu com a emoção marulhando-lhe os olhos.

OndjakiTransparente e ÁguaLustro entreolharam-se surpresos. Um déjà vu intenso fez com que o maluco poeta a olhasse pasmado. O chão estava manchado com sangue coagulado. Maria VaiComTodos manteve-se altiva, indomável e lúcida. «Só depois de recuperar a nossa dignidade é que podemos decidir se viramos ou não cristãos.» Distraída, pensava na frase que lera no Diário de Um Exílio Sem Regresso quando mais jovem. A leitura despertou-a para a independência. Desde então mudara de nome e personalidade; já não era aquela rapariga meiga e frágil que fazia silêncio perante as injustiças e confiava tudo ao Senhor. Tornou-se anarquista e passou a devorar livros proibidos.

Ao redor dos três, um grupo de mulheres, onde a VizinhaNzala se encontrava, sussurrava palavras de contestação. OndjakiTransparente olhava para Maria VaiComTodos com desejo. A maluquice cedeu um pouco, quando recordou que já fora um homem de família num passado glorioso. Num ápice, o seu falo com algum despudor rompera o fecho da calça. Algumas mulheres desandaram assombradas, as mais jovens observavam sorridentes.

Imaginou-a em casa, encostada ao sofá, despindo-se diante da televisão ligada. De pé, de lingerie, com um copo de vinho tinto junto aos lábios carnudos. Os pensamentos fluíam na cabeça de OndjakiTransparente. ÁguaLustro, calado, apontava cada detalhe no bloco de notas que trazia às mãos.

Os faróis dos carros iluminavam a entrada do hospital. Apesar do frio penetrante, grave e cortante, rostos pálidos e ensonados faziam a festa. A neblina e a escuridão pareciam mais carregadas, densas. No céu fúnebre, nevoeiro solto espraiava-se intenso. No portão da maternidade, enquanto Maria VaiComTodos, de pernas abertas, sonhava acordada, ficcionando OndjakiTransparente e ÁguaLustro, a anciã VizinhaNzala, com a ajuda de duas enfermeiras, limpava a recém-nascida.

Ouviu-se o primeiro choro de Langidila. A existência passou a fazer sentido, e Maria VaiComTodos sorria, indomável.

Atalhos:

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