FORTUNA CRÍTICA

0. Introdução

O presente artigo visa analisar a obra poética Ego do Fogo, da autoria do poeta angolano David Capelenguela, à luz do Materialismo Filosófico, que entende a literatura como uma “construção humana”, passível de ser analisada racionalmente. O autor em questão, de modo global, analisando toda a sua produção, forja a sua poética a partir da oralidade africana e na obediência às normas estilísticas ocidentais e orientais. Com efeito, a nossa análise crítica incidirá sobre um dos três eixos propostos pelo Materialismo Filosófico: o eixo circular ou dos seres humanos; o eixo radial ou da natureza; o eixo angular ou da religião.

A Crítica Literária é um exercício essencialmente dialéctico, ou seja, de enfrentamento filosófico, pois, a obra literária constitui-se como desafio ao intérprete. A obra poética, por sua condição ontológica, é enigmática e os artífices da palavra costumam introduzir ideias que podem e devem ser analisadas sob várias perspectivas, fazendo da Crítica Literária um campo regido pelo princípio da multidisciplinaridade.

Após alguns anos de leitura das obras poéticas do autor que elegemos para o nosso estudo, compreendemos os seus meandros e, portanto, que tipo de atitude interpretativa podemos assumir face aos desafios que a sua poesia impõe. Partindo desse pressuposto objectivamos analisar a obra poética de David Capelenguela, intitulada Ego do Fogo, tendo como princípio teórico o Materialismo Filosófico, o qual concebe a literatura como uma “construção humana”, pois trata-se de um autor cuja poética é moldada a partir da solidariedade entre a oralidade africana e a obediência das normas estilísticas ocidentais e orientais.

   1. Breve Biografia do autor[1]

 

            David Capelenguela nasceu na Huíla, em 1969. Vinculado ao jornalista desde 1990, no Namibe colaborou no Jornal de Angola e Angop, mas foi pelo jornalismo radiofónico que se notabilizou, tendo passado pelas rádios Namibe, Huíla, Cunene e Lunda Sul até 2020. É membro do sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA). Adstrito ao Ministério da Administração do Território, no FAS – Fundo de Apoio Social, de 1999 a 2014 foi técnico de desenvolvimento local da província do Namibe e, de 2014 a 2020, exerceu durante seis anos a função de Director Provincial da Lunda Sul. (Lunda-Sul)

            Advogado de profissão, tem o grau de licenciado e mestre em Direito, pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto, em Luanda. Mestrando (2018-2020) em Literatura de Língua Portuguesa pela Faculdade de Humanidades (Letras), frequenta actualmente o curso de Doutoramento em Ciências Sociais na Faculdade do mesmo nome da Universidade Agostinho Neto. Docente Universitário, exerce actualmente a função de Chefe de Departamento de Ensino e Investigação de Direito e Relações Internacionais da Universidade Óscar Ribas em Luanda.

Autor de 14 obras literárias, poeta, às vezes prosador e ensaísta, foi membro co-fundador da Brigada Jovem de Literatura de Angola, tendo entre 1993-1998 e 2006-2011 exercido as funções de Secretário Provincial do Namibe e Cunene. Membro e Secretário-Geral da União dos Escritores Angolanos, exerce também a função de pesquisador no Centro de Estudos de Educação e Desenvolvimento (CEED) da Diocese de Ondjiva/Cunene. Além das temáticas de desenvolvimento local e sustentável, tem-se ocupado na divulgação e investigação da literatura e da história da literatura angolana. Os seus domínios de interesse estendem-se à Teoria da Literatura e Crítica Literária, Linguística, Antropologia, Sociologia e Filosofia Africana.

[1] Informação conseguida por via de uma entrevista com o autor, em Fevereiro de 2022.

   2. Ego do Fogo no Espaço Antropológico do Materialismo Filosófico

De acordo com Maestro (2017, p.85), o Materialismo filosófico, como método de interpretação literária, é uma teoria literária que se baseia nos princípios gerais de uma gnosiologia materialista, teoria do conhecimento organizado em torno da conjugação dos conceitos matéria/forma, cujo campo de interpretação é um conjunto de saberes contidos nas obras literárias e com elas relacionadas organizadas sistematicamente como conceitos categoriais, e cujo objecto de interpretação são os materiais de literatura (autor, obra, leitor e intérprete).

Jesus Maestro (2017:127), ao conceber o Materialismo Filosófico de Gustavo Bueno como teoria literária, compreende a “Literatura como uma construção humana que existe real, formal e materialmente e que pode e deve ser analisada de forma crítica mediante critérios racionais, conceitos científicos e ideias filosóficas”.

Como construção humana, a literatura situa-se no âmbito da Antropologia; como realidade material efectivamente existente, pertence no domínio da Ontologia; como obra de arte, constitui uma construção na qual se objectivam valores estéticos; e como discurso lógico, em cuja materialidade se objectivam formalmente ideias e conceitos, é susceptível de uma Gnosiologia, isto é, de uma interpretação baseada em análises crítica das relações de conjugação entre a matéria e a forma que a constituem como tal Literatura.
(Maestro,2017, p.127)

Todavia, para este trabalho, interessa-nos a definição de “Literatura” no espaço antropológico, lugar a partir do qual apresentaremos uma análise filosófico-materialista da obra Ego do Fogo.

Segundo Maestro (2017, p.130), o espaço antropológico “é o campo no qual se situam os materiais antropológicos”, considerando a Literatura como parte essencial dos diversos materiais antropológicos que ajudam a explicar o homem no tempo e no espaço.

Essa importância que Maestro atribui à literatura pode ser compreendida por via do vasto repertório literário que hoje permite outorgar à Literatura Angolana o estatuto de uma macro instituição que reivindica toda a produção cultural produzida nesse espaço político-administrativo delimitado pela Conferência de Berlim, desde a arte neolítica às produções artísticas produzidas no período de ocupação colonial aos nossos dias.

O poemário Ego do Fogo de David Capelenguela só existe, embora se materialize tecnicamente, sobretudo no plano formal, como um produto estético que assimila as poéticas universalmente reconhecidas (simbolismo, surrealismo, concretismo, experimentalismo, etc.), porque resulta de uma cultura híbrida, multi-étnica, que deve ser inserida inequivocamente no espaço angolano.

A poesia de Capelenguela é a soma das suas experiências híbridas de sujeito cartesiano (forma e intenção estética) e simultaneamente africano (predominância cultural das tradições Herero, Nyaneka-Humbi e ovibundu), animista em sua matriz cultural, de um racionalismo invulgar atravessado por eventos históricos sincréticos.

David Capelenguela integra o terceiro período[1] da literatura angolana produzida no período pós-independência (1992 a 2001). Embora tenha publicado o seu primeiro livro no final da década de 80 do século passado, é geralmente apresentando como um poeta da chamada geração de 90. Forjando quase todas as suas obras na oralidade africana, publicou os seguintes livros: Planta da sede (1989), O enigma da Welwitschia (1997), Rugir do crivo (1999), Vozes ambíguas (2004), Acordanua (2009), Véu do vento: haikais e sonetos (2011), Gravuras d’outro sentido (2012), Tipo-Grafia lavrada (2012), Ego do fogo (2013) e Verso vegetal (2014).

Ego do Fogo é a compilação de 95 textos poéticos distribuídos em duas partes: a primeira parte é designada por Primeira Viagem do Verbo e compõe-se de 56 poemas; a segunda parte, Segunda Viagem do Verbo e compõe-se de 39 poemas.

[1]   Em nosso livro, ainda no prelo, intitulado Cortes Sincrónicos: Crítica da Literatura Angolana Contemporânea (1975-2015), reconhecemos cinco períodos distintos depois de Angola ter alcançado a independência: 1975-1979; 1980-1991: 1992-2001; 2002-2007; 2008-2015. É no terceiro período que colocamos David Capelenguela, mas é preciso alertar que, em termos de publicação, o poeta continua o seu trajecto. A razão do “corte sincrónico” é porque estamos em face de um mero procedimento didáctico.

A poesia do Ego do Fogo, enquanto acto criativo, resulta sobretudo daquilo que o estudioso angolano Jorge Macedo (1986) designou por poética de motivação oral[1]. David Capelenguela apropria-se dos materiais intactos que sobreviveram da colonização através da resiliência cultural dos povos Herero, Nyaneka-Humbi, Ovambo, e ovimbundu, modela-os com pinceladas da modernidade através da sua incorporação como instrumentos de adorno a realidades deslocadas, geralmente urbanas como se pode constatar no poema de abertura:

Despe-

se

e

despede-se

já (re) feita

acolhida do gemido

 

A brisa envolve-a

aos olhos hospeda o sol

com o alívio e saturação

 

Traz nos pés

tecidos de hino

o enobrecimento

beleza da Zebra

 

E a alegoria que faz

enfatiza a vaidade

de todo este herero

 

Canto Feminino

recanto kuvale

(p.11)

Ego do Fogo, em termos temáticos, circula em todos os lugares postulados pelo Materialismo Filosófico, que distingue três eixos no espaço antropológico:

  • 1) O eixo circular ou dos seres humanos.
  • 2) O eixo radial ou da natureza (o inanimado e inumano).
  • 3) O eixo angular ou da religião (o inanimado e inumano, isto é, os animais como núcleo da experiência religiosa, etc.).

Depois de estudar a poesia de Capelenguela, conhecendo a sua natureza, acreditamos ter elementos suficientes para analisá-la em todos os eixos postulados pelo Materialismo Filosófico. Contudo, limitaremos a nossa análise ao primeiro eixo, o qual julgamos saturar explicita e implicitamente todo o conteúdo abordado por David Capelenguela.

Segundo Maestro (2017, p.132), do ponto de vista do eixo circular, a literatura adquire equivalência ante toda uma dimensão pragmática, histórica e política, a partir do momento em que os seres humanos constroem, cambiam, recebem e interpretam construções literárias, dotadas formalmente de conteúdos materiais (oralidade, manuscritos, livros, suportes digitais), psicológicos ou fenomenológicos (fábulas, histórias fictícias, personagens ideias, relatos míticos, explicações imaginárias…) e lógicos ou conceptuais (a literatura como forma de conhecimento e de expressão de ideias, reflexões e conceitos).

É neste eixo do espaço antropológico em que hegemonicamente localizamos a poesia de David Capelenguela presente em Ego do Fogo por seu ímpeto semântico.

A divisão da obra em partes não é explícita, parece arbitrária, porquanto assistimos a uma espécie de anarquia em termos de organização temática e acreditamos que teríamos possivelmente aqui um clássico da poesia erótica angolana, não fosse o número exacerbado de poemas e multiplicidade de opções temáticas, constituindo-se alguns desses poemas como meras redundâncias. Por consequência e por sugestão ao autor, suprimindo meia dúzia de textos que deixam transparecer alguma incoerência no meio de muitos bons textos, extrair-se-ia deste poemário pelo menos dois ou três bons livros poéticos.

Por conseguinte, em virtude dessa desorganização a que nos referimos acima, traçamos algumas linhas temáticas possíveis:

Naturalmente, em primeiro lugar, temos a temática que predomina a obra: os poemas eróticos.

[1] Quando for mera tradução não estamos diante de apropriação como tal, na medida em que os poetas mais honestos como Ruy Duarte de Carvalho ou ainda Zetho Cunha Gonçalves deixam explícito a autoria atribuindo-a aos povos onde os textos se originaram.

A poesia erótica aqui reunida, embora se constitua toda como uma alegoria em virtude da apropriação que os diferentes sujeitos poéticos fazem da oralidade, deve ser encarada com outros olhos, pois, há, em alguns casos, narrativas escondidas por trás desse erotismo. Tal é o caso do poema “Zebra” (p.13) que alegoricamente satiriza a figura do anterior presidente da república José Eduardo dos Santos, vulgarmente conhecido como “Zé Du”, destacando-se no referido poema a letra “Z”, inicial de “Zé Du”, que é a Zebra, zagaia no trono do Zénite:

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

Zebra, zagaia     no     trono     do     zénite

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

Zebra, zagaia    no     trono     do      zénite

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzz…… no deserto com gaz(elas)à solta

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

(…)

Zebra, zagaia    no     trono     do      zénite

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzz…… no deserto com gaz(elas)à solta

zzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzzz

zzzzzzzzzzzzzzzzzGRANDAZEBRAzzzzzzzzzzzzz

No quotidiano angolano Zebra geralmente remete para acções ou factos que não deram certos. Com efeito, a ideia de fracasso é reforçada pelo penúltimo verso (ZZZZZZZZ GRANDAZEBRAZZZZZZZZZ), de matriz popular, repleto de sarcasmo.

Zagaia, pelo menos na realidade cabindense, é um instrumento musical de construção artesanal, feito de alumínio, usado em cerimónias religiosas e fúnebres; emite um som que só se torna eufónico pela combinação harmoniosa com outros instrumentos.

 Zénite reflecte o auge, mas, por inerência das outras expressões de conotações negativas, pela repetição do verso, assim como pelos versos subsequentes (no deserto com gaz(elas) à solta), trata-se de um “Zénite” de fracasso.

Escrever poesia erótica julgamos que todo o mundo consegue. Escrevê-la com arte e subtileza para transformar o indecoroso em material legível que pode circular livremente em salas de aulas, isto é, sair do comum, da vulgaridade, só com toque artístico, é bem mais difícil.

É muito raro alguém dar-se bem com o erotismo sem a prática sexual. Aliás, quando alguém consegue palmilhar pelos caminhos do erotismo, se não amou outra pessoa amou-se a si mesma como outra pessoa. A poesia erótica exige vivências, a activação de todos os sentidos, facto que nos faz acreditar que David Capelenguela é um indivíduo experimentado. A sua poesia é um misto de vivências rurais e urbanas, por vezes sem a definição de espaço, pois, em alguns poemas, os dois espaços colidem e o sujeito libidinoso perde-se em sua acção. Tal colisão resulta da combinação dos signos rurais com actos afectivos espacialmente indetermináveis. Nestas construções, o campo, o signo “oral” é adorno e sem delongas, essa atitude artística acompanha quase todos os poemas de David Capelenguela.

Alegoria (p.11),Zebra (p.13), Sedução (p.14), Meditação (p.16), Palma(d)nua(p.17), Fineza do passo(p.19), Observação (p.23), Unidade da forma(p. 28),Navegação das almas(p. 29),Esquematização do gesto(p.30),Memórias dos tambores(p. 33), Entre(fenda)aberta (p.36),Coito indigesto(p.39),     Assobio de aviso(p. 55), Duodécima noção do fogo(p.60), A miragem que lhe ofereço II(p.62), A miragem que lhe ofereçoIII(p.63), A miragem que lhe ofereço V (p.66), A miragem que lhe ofereço VI(p.67), Sombra vencida (p.75),Porta do curral(p.76), Servidão da esteira(p.78),Perto da fonte(p.81), Acordanua(p.82), Som sedutivo(p.94), Apelo para o silêncio(p.97), 7 e 1 /4,Erecção(p.102), Servidão (p.105), Asas no dorso (p.107),Canção metafórica(p.108), Kotyitalukilo(p.109),etc., são amostras dessa poesia erótica à qual referimos acima.

Em segundo lugar, temos a poesia de intervenção social.

David Capelenguela trabalhou e trabalha em instituições públicas, ocupando cargos de destaques. Conhecendo a configuração do fenómeno político em Angola, um dos assuntos mais complexos de que temos vindo a tratar prende-se com a relação antagónica entre a política e a literatura, escritor e política ou escritor e cargo público. Por via da poesia erótica, Capelenguela consegue disfarçar o lado interventivo da sua arte. Entretanto, parece-nos não querer inscrever-se no espaço da cobardia onde geralmente habitam os escritores que se autocensuram na esperança de conseguirem um cargo público de destaque ou mantê-lo. O poeta – como não se espera, pelo menos nós acabamos surpreendidos – ergue estridentemente a sua voz a favor do povo:

Roça-me o rosto de uma criança
com o brilho de salitre
o sol cede-me o mar
Encena-me a sociologia de Angola
sobre o questionamento do destino
que aponta-me para a penumbra
fome
corrupção
nudez
prostituição
embriaguez
males e modos de morrer antes de viver
Hino dos adivinhos (p.12)

O poema com o título Agonia mantém uma relação intertextual com o mito dos Fulani, que pode ser lido em forma de poesia na página 17 do livro  Ondula Savana Branca de  Ruy Duarte de Carvalho, com a diferença da menos-prosa[1] de David Capelenguela e adaptação. Em Capelenguela, o mito é a “democracia” que parecia ser a cura para todas as formas de injustiças:

A pedra pariu o som
o som a sombra
a sombra o medo
o medo a fome
a fome a morte
Da morte
a corrupção da estrada
ficou cuidando de si
e seus irmãos
veio a democracia
que matou a morte
matou a corrupção
e matou a ganância
A ressurreição veio a seguir
trazendo consigo os pobres
que viveram
da morte da agonia
Agonia(p.43)
[1] Expressão usada por Jorge Macedo em Poéticas na Literatura Angolana para se referir aos poetas angolanos que, depois dos poetas da Mensagem, primavam pela sintaxe rígida da poesia lírica em comparação aos poetas da geração de 50 cujos textos, no plano do fundo, apresentavam um discurso prosaico(narrativo).

A problemática dos antigos combatentes e mutilados de guerra é aqui apresentando na sua forma mais cruel, não muito diferente da realidade objectiva em que até indivíduos que, durante a guerra civil, integraram as formas armadas governamentais andam atirados ao abandono.

Passa um antigo combatente de
mu
le
tas
pára e pela vidraça
estende a mão
ao secretário-geral
pedem-nos esmolas
este diz:
não sei de que lado lutou!
e gargalhadas no salão
até do ministro afim
Aniversário (p.57)

Quando Capelenguela se exercita na poesia contestatária, a voz rural dilui-se como se a injustiça não transitasse em contexto pós-colonial para essas sociedades mais antigas que também, administrativamente, fazem parte do território angolano. O simbolismo, o animismo e o antropossurrealismo, como diriam outros, dão lugar ao neo-realismo. Os signos ruais desaparecem quase que completamente. Podemos aqui criar duas teorias:

A primeira é a da evasão lírica – a poesia engajada pede mais conteúdo do que técnica. Poucos são os poetas que atingem a perfeição revolucionária de Pablo Neruda no espaço da literatura engajada. Não queremos com isso acusar de fragilidade a poesia de Capelenguela, mas a verdade é que grande parte dela, embora impressione, não atinge os níveis da poesia erótica.

A segunda teoria prende-se com o espaço rural como um lugar puro de acordo a concepção do poeta. Parece que, para o poeta, a ancestralidade e pureza africana se restringem ao rural, ao campo. Em virtude disso, os signos que daí derivam constituem o adorno da sua poesia mais elevada, daquela que nasce dos motivos mais sublimes, dos afectos, porquanto a poesia engajada resulta do desafecto em relação as políticas públicas que não impactam positivamente a vida dos cidadãos.

Hino dos adivinhos (p.12), Desolação (p.32), Agonia (p.43), Aniversário (p.57), Gemer intrépido (p.58), Democracia (p.69), Anestesia (p.70), constituem o corpus da poesia que resulta do desafecto, a poesia de intervenção social.

Em terceiro lugar, temos a poesia que verdadeiramente reflecte as vivências rurais.

O poema Fertilidade (p.18) é sobre o cruzamento entre etnias e pode configurar uma crítica à ideia de identidade voltada à pureza étnica.  Imageticamente remete para um tronco geneológico em que ocorre o processo de miscigenação entre diferentes grupos étnicos.

Os antepassados abrem-nos o sol/
(..)
O fremir da terra
adverte a alegria da aldeia
que o canto Kuvale solta
ao som da acção do fogo
Resta-lhe o alcance
do Kuroca a dentro
e a formulação da estepe
que presta homenagem e o saciar
da conjugação

A pastorícia é uma prática muito comum entre os povos do sul de Angola. Enquanto os bois se alimentam, resta ao pastor algum tempo para rara reflexão. O poema “Gesto ruminar” (p.25) é sobre gestão do tempo. O sujeito poético é pastor e identifica-se no acto do boi. Da sua observação cronometra o processo de alimentação e digestão do boi que, depois de comer, fica arreado para o processo de digestão.

Estou selado no pasto
medito o sul
ao sol poente
Na superfície contemplativa
do gado
confiro as horas
em gesto ruminar do boi
e atinjo a exactidão da regra
é ainda primeiro dia
pela frente
conto cruzar-me com a chuva impiedosa
deste tempo
Mas pasto…
gravado no olhar gestual do gado
liberto as estações da lágrima descritiva
e finjo que canto o djeyiei
hino da circuncisão
ao ritmo ruminar do gado

Nos grupos étnicos Nyaneka Humbi, Herero e Ovambo, o gado simboliza riqueza, poder, estabilidade.  O poema Recheio (p.26) desenvolve-se por via da prática cultural Ukoi, que ocorre geralmente quando um casal experimenta dificuldades financeira em sua casa, consubstanciada na perda e na redução do gado enquanto produto que permite regular a economia. Por vezes essa instabilidade deriva dos gastos vinculados a uma festa de puberdade, pagamento de multa, cura de doença e do adultério. Casos há em que o casal concorda simular um assédio que geralmente se consuma em adultério pela predisposição masculina para o acto sexual extraconjugal. Em todo o caso, o presumível infractor deve pagar sempre uma multa:

Recheio
Na plataforma do vigor
A urgência da mudança
Governa a profecia do Ukoi
E o gado da sua multa
é recheio para o novo curral
a que se destina
Coro:
Vindes ver minha mulher
de mãos abanadas
venceu um curral
recheado de gado…
Amanhã será outro dia

Fertilidade (p.18),Gesto ruminar (p.25),Recheio (p.26),Vocativo (27), Canto idoso(31), Verbo da serpente(41), Recepção cerimonial(45),Tatuagem(52), Oku-luo(77), Lamento(80), Segredo do pasto (83), Dois tempos(84),, A chuva(90),Adágio do verbo(91),Fecundidade (93),Canto Herero(95), Canto de apreço(98), Areias do rio(100), Transumância(106),etc., constituem o núcleo dos poemas sobre as vivências rurais.

Em quarto lugar, deparamo-nos com os poemas que objectificam a noite ou a apresentam como período de contemplação, criação e descanso:

E poisa-me o gesto sintético
da oralidade poética
e passo a noite
imerso sobre os corais da tradição
sinais misteriosos
que alcanço sob a purificação
morte da noite
Morte da noite(p.34)
para mim nada mais interessa senão
o nada do agora
a morte é o repouso absoluto
da alma e do corpo
o diálogo fiel e directo
com Deus que nos chamas
a vida é o intervalo
entre duas noites e nada mais:
(…)
Intersecção(p.46)

Em quinto lugar, encontramos os textos que homenageiam a oralidade, lembrando que quase toda a sua produção poética é um hino à oralidade.  A temática anterior, sobre a noite, está em estrita ligação com esta, pois, geralmente, ela, na tradição africana, concretiza-se nocturnamente:

Quando a sombra segrega
o dorso do pranto
o vento suspeito
a ausência da luz
e o regresso da oralidade
fazem-se mais cedo
Apego da luz (p.35)
Brando apaga-se pelo apogeu
e pelos pêlos do gesto verbal
assim a lua tem vencido
o fundo do fogo
com o signo da língua
quando bem utilizada
a palavra
Signo da língua (p.38)

Embora se diga que toda a poesia é filosófica, em sexto e último lugar, como eixo temático, temos os poemas filosóficos, no sentido de serem mais introspectivos e levarem a aspectos metafísicos. Tal dimensão filosófica está sobretudo no diálogo que resulta dos devaneios poéticos que o sujeito tem sobre os antagonismos dos objectos ou ideias:

A morte e a vida
A morte:
apressa-te a viver
faz tempo que
espero pela minha vez
A vida:
apressa-te a chegar
faz tempo que
o meu mandato terminou
Ciclo de ruminação(p.59)
Primeira raiz do fôlego
A água e a terá
a água diz:
inchar-te-ei de água
ó terra firme
dos corais
a terra diz:
engolir-te-ei
ó água (in)poderosa
dos céus
A miragem que lhe ofereço(61)

Ciclo de ruminação (59), A miragem que lhe ofereço (61), A miragem que lhe ofereço (64),Silêncio (79), Palma da lua (86), Tição para fogo I (87), Reinado (88),Lucidez (96), Tundavala (99), Ferrão (103), Tição para o fogo II (105),Trans(fe\pa)rência(110), Doação(112),Corpo Viril(113),Vastidão do olhar(114),Canto promessa(115) constituem o núcleo do que aqui dessigamos por poemas filosóficos.

  3. Consolidação

 

Mediante os factos expostos, postula-se que a Literatura é uma construção humana e a sua interpretação implica elencar todos os campos categoriais que fundamentem as acções do homem. Será, portanto, a Crítica Literária este espaço de confluência multidisciplinar em que essas ciências solidariamente concorrerão para o mesmo fim: a interpretação da obra literária.

David Capelenguela é um autor cuja poesia se enraíza em culturas milenares. A sua poesia exige mais pesquisas e leituras para uma interpretação que se conceba como verdade filosófica quase completa. A pesquisa a que nos referimos não é apenas bibliográfica, mas sim exploratória, implicando estar no terreno, observar conhecer de perto as práticas culturais dos povos por si eleitos. Entretanto, é preciso deixar claro que a nossa análise, embora incompleta, procurou adentrar essas culturas por via de entrevista ao próprio autor e a pessoas que provieram desses lugares.

      4. Referências Bibliográfica

 

Capelenguela, D. (2012). Ego do Fogo. Luanda: Triangularte Editora.

Carvalho, R.D. (2014). Ondula Savana Branca. Luanda: Grecima.

Macedo, J. (1980). Poéticas da Literatura Angolana. Luanda: INALD.

Maestro, J. G. (2017).  Crítica da Razão Literária. O Materialismo Filosófico como Teoria, Crítica e Dialética da Literatura. Vigo: Editorial Academia del Hispanismo.

Hélder Simbad é pseudónimo literário de Helder Silvestre Simba André, filho de Pompílio Mateus André e de Albertina Simba; casado com Helena Wavinga da Silva André; é natural de Cabinda, Angola.

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