Há sinais de uma virada ética lenta, entre nós. Alguns críticos mais jovens estão voltados para a presença mais criativa da crítica literária nos espaços alternativos e não só, onde posturas profissionais e amadoras convergem para o mesmo palco.
No pós-independência, a década de 80 e meados da de 90, com a determinante força do consumo que proporcionou a explosão editorial, sobretudo a resultante da produção da União dos Escritores Angolanos, elevou-se bem alto a fasquia da crítica literária. Mas, de algum tempo a esta parte, a crítica literária foi ficando subsumida, reduzida, enquanto epifenómeno do consumismo geral. Houve mudança no centro de gravitação: da mão dos mais habilitados críticos e alguns poucos então estudantes universitários à mídia. Certamente porque por “enceguecimento” estes críticos da época fizeram uma perversa reserva de mercado trabalhando em cima do consagrado, por uma preguiçosa convenção das ementas. Daí o jargão, o tom – e a má fama: académico passa a ser depreciativo, por repetitivo e sem graça; no que difere do criativo, do que satisfaz por surpreender e acrescentar. E, se bem que poucos reivindicam com orgulho a tarefa que lhes cabe – de partilha e transmissão de uma memória cultural – como crer que a cultura crítica e literária entusiasme os mais novos? E como a criação consistente pode acontecer aqui, se toda invenção pede um inventário? Levados pelo desencanto com a apresentação desse inventário, reduzido à peruca e poeira, acuamos os críticos mais maduros ao desencanto e os novos escritores à presunção de criar o círculo. E, perante tal realidade, pergunto como pensar o lugar e a função da crítica literária? Como pensar a crítica literária contemporânea e seu lugar no debate público de ideias?
A esse respeito, direi que, a ênfase do indivíduo criador é tanto causa quanto efeito de uma ruptura de elo aparente entre o texto e o mundo que permitirá o surgimento de uma ideia de obra como totalidade contida em si. Cada vez mais
regida por princípios que lhes são interiores, que ela impõe a si mesma e que, consequentemente, não podem mais ser ditados de fora, vai daí surgir aquele tipo de escolha e ordenamento das palavras que funciona como a assinatura do escritor, sem que ele precise escrever seu nome, que é o estilo. A língua, enquanto sistema organizado de signos linguísticos, impondo um léxico e determinadas normas gramaticais, o indivíduo que a utiliza selecciona os signos (palavras) dentro das séries paradigmáticas e combina-os livremente no eixo sintagmático. É nessa liberdade de recriar a linguagem que se situa o estilo. Por sua vez, a Semiologia, como todo estudo sobre os signos e, portanto, sobre a linguagem humana, que é um sistema de signos, é evidentemente uma metalinguagem, como o são todos os demais discursos que falam sobre a Literatura, enquanto um corpo ou uma sequência de obras, nem mesmo um sector do comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever.
Assim, se a Literatura é um trabalho de encenação da linguagem ou de deslocamento que o autor opera sobre a língua, levando o leitor a romper com toda e qualquer estrutura fixa de pensamento, a “crítica literária” só pode ser um trabalho de re-encenação, que, longe de apenas avaliar ou meramente chamar atenção sobre a obra, encete também um diálogo com ela, levando adiante o processo de reflexão desencadeado. Toda crítica viva – isto é, que desempenha a personalidade do crítico e intervém na sensibilidade do leitor – parte de uma impressão para chegar a um juízo. Entre impressão e juízo, o trabalho paciente da elaboração, como uma espécie de moinho, tritura a impressão, subdividindo, filiando, analisando, comparando, a fim de que o arbítrio se reduza em benefício da objectividade, e o juízo resulte aceitável pelos leitores. Ao invés de simplesmente enumerar itens ou explicar elementos poéticos ou narrativos, a crítica os submete a uma ideia reguladora articulada pelo crítico. Aqui entra em cena sua imaginação: ao formular hipóteses, baseando-se estritamente naquilo que o texto fornece, o crítico aponta para algo inusitado, até então despercebido. Uma crítica realmente forte cola no objecto; ela reconfigura a obra de tal maneira que o seu significado passa a ser aquilo que foi enunciado e torna-se difícil imaginar qual era o seu sentido anterior à crítica.