Entrevistas

No contexto literário angolano, o seu nome dispensa apresentação. Nasceu em Benguela, em 1960, nos finais da década de 70, exerceu jornalismo na Rádio Nacional de Angola. No princípio da década de 80, apaixonado pelas artes e letras, segue para a cidade do Lubango onde frequentou o 1º ano na então Faculdade de Letras, que viria a ser extinta logo depois.

Daí regressa para Luanda onde prosseguiu os estudos em Direito, a par de intensa actividade de publicista no Jornal de Angola.

Para compreendermos parte do seu percurso histórico-literário, fomos ao encontro de Luís Kandjimbo, em sua casa, onde, como sempre, nos acolheu numa amena e agradável conversa, ao fim da tarde de pôr de sol, enquanto, Suchi, sua cadela, sobre nossas pernas batia levemente com a sua cauda, como quem diz:” aqui, vocês são sempre bem-vindos”.

David Capelenguela (DC): No seu livro “Apologia de Kalitangi”, o escritor Luís Kandjimbo traz à tona, mais uma vez, o debate em torno da angolanidade literária. Para si, o que é de facto a angolanidade literária?

Luís Kandjimbo (LK): Na verdade, a angolanidade literária subjaz uma angolanidade- pressuposto que comporta uma experiência, um sistema de referências, uma memória colectiva, um sentido de passado ou história, sobre o qual assenta a estratégia dos escritores. O texto literário é, assim, a materialização de uma das várias modalidades possíveis da experiência angolana. É essa pregnância de determinismo que sustenta o princípio constitutivo dos textos literários, enquanto objectos que conformam a literatura angolana.

DC: Para compreendermos a literatura angolana, no seu ponto de vista, em quantas partes ela pode ser analisada?

(LK): Em três grandes vertentes, nomeadamente a literatura oral, a literatura escrita em línguas nacionais e a escrita em língua portuguesa.

DC: Percorrendo a historiografia literária angolana da segunda metade do século XX, como consagraria as gerações literárias?

(LK): Em cinco gerações. As quatro primeiras gerações, ao contrário da última, emergem no contexto da situação colonial. Todavia, o período que tem início com a independência traduz, por si só, uma ruptura, podendo denominar-se como período pós-independência. Tal período há de ter na Geração das Incertezas os expoentes das respectivas manifestações literárias. Num esforço de selecção e depuração, incidindo sobre alguns autores e sua obra, concluiremos que eles são cerca de quatro dezenas com mais de cinquenta livros publicados no total. É evidente que a história literária efectiva assenta no sentido de passado, quando vivemos o presente. A sua base epistemológica reside num processo que cobre a compreensão das tensões, rupturas e recuperações, bem como a transformação do universo cultural. Por isso, a história de uma geração literária implica a delimitação do segmento de tempo em que se afirma, interessando referir as idades dos seus membros ou suas datas de nascimento, exactamente porque ela constitui um grupo que apresenta um certo tipo de características.

DC: Há quem diga que a questão da definição das gerações literárias é bastante confusa. Do seu ponto de vista, que características devem apresentar os escritores e os respectivos textos para pertencerem ou não a uma dada geração?

 (LK): Os teóricos que se dedicam à sociologia das gerações literárias operam com um conceito elaborado a partir de uma diversidade de factores, entre os quais a experiência e a actividade geracional. De acordo com o segundo factor, «nenhuma geração permanece como simples espectador, mas intervém activamente no desenvolvimento dos factos históricos que o seu tempo lhe impõe», como diz o ensaísta cubano José António Portuondo. A proximidade etária tem grande importância para compreender as suas atitudes, tendências ou preferências estéticas e criativas num espaço analítico que privilegia o campo da literatura.

DC: Que elementos de proximidade ou influências assinalam entre a geração de 70 e a sua, a de 80?

(LK): A geração literária de 70 é um prolongamento natural da anterior, já que não se registam ou ocorrem importantes soluções de continuidade. Observa-se ainda entre alguns dos seus membros a predominância da atitude ética relativamente aos imperativos de ordem estética e literária da sua época. Esta geração representa o espírito da época de transição para o período que se segue à descolonização. Apesar das experiências de heróis e mártires, igualmente vividas pelas duas gerações imediatamente anteriores, não me parece que elas e a sua escrita se tenham constituído em modelo de superação para a geração de 80. Há uma descontinuidade observável na escrita de ficção e nos padrões estéticos, provocada pela exacerbação de temas literários marcados, de certo modo, por uma ideologia política oficial e sua introdução nos manuais escolares. Mas tal constatação só faz sentido se a associarmos ao facto de, à data da independência, os liceus e os três centros universitários do país serem frequentados por um número de jovens angolanos, até aí nunca visto. Para um país que saía das malhas de um colonialismo atroz, essa população estudantil não deixava de representar uma justificada expectativa. Segundo as estatísticas da época, de uma taxa de matrícula inferior a Moçambique no início das reformas, a população escolar angolana do ensino liceal, por exemplo, passaria a 10.779, um número superior ao de Moçambique, que era de 10.524. No ensino universitário, o efectivo angolano, com 1.557, era igualmente superior ao de Moçambique, registando apenas 1.145. Durante a segunda metade dos anos 70 uma boa parte dos membros da geração literária de que estamos a falar frequenta os Liceus e a Universidade, cujos currículos obedecem aos cânones literários portugueses. Por circunstâncias várias, alguns deles cedo tomaram contacto com textos de autores angolanos e tendências literárias de pendor autonomista.

Com a independência política de Angola em Novembro de 1975, é fundada no mesmo ano a União dos Escritores Angolanos cuja proclamação é feita sob os auspícios da «vinculação da criação literária ao processo revolucionário».

DC: O escritor Luís Kandjimbo é daqueles que concorda que o surgimento da UEA, 29 dias depois da nossa independência, terá dado lugar ao compromisso com o «processo revolucionário» para uma orientação ideológica das manifestações literárias?

 (LK): Sim. De tal modo que o mercado do livro passou a ser dominado, durante algum tempo, pela literatura dos países socialistas, tendo sido banida a literatura e autores de países chamados capitalistas.

DC: Sobre os momentos fundacionais da instituição de que o senhor é Presidente da Mesa da Assembleia hoje, no dia 8 de Janeiro de 1979, na tomada de posse do corpo dirigente da União dos Escritores Angolanos, no seu discurso, o Presidente Agostinho Neto defendeu «o mais alargado debate de ideias», quando dizia : «[…] é necessário o mais alargado possível debate de ideias, o mais amplo possível movimento de investigação, dinamização e apresentação pública de todas as formas culturais existentes no País, sem quaisquer preconceitos de carácter artístico ou linguístico». Terá essa intervenção jogada algum papel determinante para o surgimento da Brigada Jovem de Literatura de Angola?

LK: Sim, contribuiu. É nesse ambiente que emerge nos anos 80, a que eu denomino Geração das Incertezas ou Geração da Revolução. Ela é filha da independência, realiza a sua formação em circunstâncias marcadas por profundas incertezas do ponto de vista ontológico, além de viver experiências profundamente catastróficas, tais como a guerra. A incerteza é, por seu lado, aqui entendida no sentido epistemológico, na medida em que não existem verdades absolutas. Do ponto de vista biológico alcança a maturidade nos fins da década de 70, afirma-se na década de 80 com a publicação de livros, participação em concursos literários, a que se junta uma intensa e eufórica actividade associativa de jovens nos principais centros urbanos de Angola.

Foi de facto a expressão desse movimento associativo que deu origem a Brigadas Jovens de Literatura, que tendo a primeira sido proclamada em Julho de 1980, Luanda, sob o signo da necessidade de «persistir na ideia do debate […] e o mais alargado possível debate de ideias». Seguiram-se as da Huíla, em Setembro de 1980 e do Huambo em 1983. Em Luanda e Lubango publicavam-se as revistas Aspiração e Hexágono, respectivamente. Várias outras cidades e capitais de província como Lobito, Uíje, Namibe, igualmente cidades em que se encontram implantados estabelecimentos do ensino médio,

pré-universitário e universitário aos quais se juntam os seminários da Igreja Católica e outros estabelecimentos religiosos. Os primeiros membros das Brigadas a publicar livros são, nomeadamente, Fernando Couto, António Fonseca, Carlos Ferreira e Carlos Silva. Pela manifesta intenção de anunciar o surgimento de uma nova geração e não sendo exactamente pelo nível de elaboração literária, merece referência o livro de Fernando Couto A Esta Juventude, publicado em 1983.

DC: Há aqui um pormenor importante. Não estando em Luanda o escritor Luís Kandjimbo, nessa altura, como toma contacto com a Brigada Jovem de Literatura?

(LK): Em 1980, frequentando o curso pré-universitário pedagógico na cidade do Lubango, preparava-me para iniciar o primeiro ano do curso de Letras Modernas da ex-Faculdade de Letras, actual ISCED, e exercia a docência no ensino secundário (Escola Popular), dinamizei a constituição da Brigada Jovem de Literatura da Huíla (BJLH), em companhia do Luís Neto (Kilunji Kota), do Diniz Kakinda e Aníbal Simões. As reuniões decorriam no meu quarto situado no prédio da Sogelo na cidade do Lubango. A decisão de fundar a BJLH foi consequência das nossas conversas sobre literatura e do fervoroso interesse pela leitura. Quando o Kilunji Kota se deslocou a Luanda, recomendei que ele trouxesse toda a documentação que suportava a estrutura organizativa da BJLL para que nela nos inspirássemos com o mesmo fim. Em posse dos documentos, constituímos a BJLH em Setembro de 1980, num acto solene que teve lugar no Cine Arco-íris, presidido pelo General António França (Ndalu) que na altura se encontrava na região sul. Era tempo de guerra. A cerimónia correu bem. Assinámos o livro da proclamação. A BJLH tinha cerca de cinquenta membros. Eu, o Kilunji Kota e o Anibal Simões integrámos a primeira Direcção, ocupando, respectivamente, os seguintes pelouros: Secretário para a Redacção e responsável pela edição da revista HEXÁGONO (policopiada), Secretário para a Organização, Secretário para as Atividades Culturais. Eleito como Secretário-geral tinha sido o Java, estudante do curso de Física e funcionário do centro de reprografia do ISCED. Entre os colaboradores da revista HEXÁGONO (com seis secções, incluindo o prefácio) destaco, além de mim na secção crítica e ensaio, o Aníbal Simões (Baladar na altura), Ana Paula Abreu Dias na narrativa, o Kilunji Kota, o Lussakalalu Pedro e o Diniz Kakinda, na poesia. Em Novembro de 1981, abandono a cidade do Lubango. Ao chegar a Luanda, visitei a sede da BJLL. Fui bem acolhido pela Direção (Lopito Feijó, São Vicente, Vítor Jorge, Buka, Cassé, Gastão Rebelo, António Fonseca,) e outros companheiros. Tornei-me membro e participei na II Reunião Geral de Membros. Seguidamente fui designado Secretário para a Investigação e membro da Comissão de Leitura. Com António Panguila, Domingos Ginginha, Joca Paixão, Lopito Feijó estabeleci uma estreita relação de amizade que se devia ao facto de alguns de nós (com Joca Paixão e Lopito Feijó) serem colegas de curso na Faculdade de Direito. Mas a principal afinidade era a necessidade de animar o ambiente literário de Luanda com algum debate. A Brigada começava abrandar o ritmo inicial. Formámos o nosso grupo cujas reuniões decorriam regularmente no Centro de Imprensa, na Livraria Lello ou no 3º andar do Lar Universitário da Avenida Rei Katiavala, onde eu morava.

DC: Em que circunstâncias se dá o surgimento do Ohandanji?

(LK): O meu regresso a Luanda dá-se num momento de grande turbulência interior. A necessidade de dominar as várias linguagens artísticas levou-me ao cinema. Trabalhei no Laboratório Nacional de Cinema com a finalidade de conhecer a realização cinematográfica. Era a época de ouro do Cinema Angolano. Pontificavam Ruy Duarte de Carvalho, António Ole, Orlando Fortunato e outros. Conheci pessoalmente o Ruy Duarte nessa altura. Com ele travei breves conversas sobre poesia. Mostrei-lhe alguns poemas. Nas horas vagas continuava a fazer as minhas pesquisas na Biblioteca Municipal de Luanda e do Arquivo Histórico. Eu pretendia realizar um documentário sobre História da Literatura Angolana, tendo elaborado o esboço de um guião com o Alberto Sebastião, assistente de realização do Ruy Duarte. Nessa altura inicio a minha colaboração no Suplemento Cultural Vida & Cultura do Jornal de Angola (J.A.) Conheço o Américo Gonçalves (Ocirema), o editor cultural principal. A partir daí passei a publicar artigos em todas as edições desse Suplemento que saía ao Domingo.

O que estava na moda era o realismo mágico latino-americano. Mas para mim e alguns companheiros fazia falta olhar mais para dentro do continente e do País. Falávamos das leituras do romance africano, da poesia africana, renovação da linguagem poética, da produção de um novo discurso crítico, da necessidade de cultivar o ensaio. Estes eram assuntos de conversas com o Aníbal Simões ainda nos tempos do Lubango. Com ele falava da narrativa e dos temas de Chinua Achebe, Ciprian Ekwensi, Amos Tutuola, Ngugi wa Thing’o. Em Luanda, com o António Panguila, Domingos Ginginha, Joca Paixão, Lopito Feijóo e outros falava da renovação da poesia e da combinação da palavra e formas da linguagem visual. Assim, levei os outros membros do grupo a conhecer o Ruy Duarte de Carvalho. Ele e o Jorge Macedo eram alguns dos poucos poetas, membros da União dos Escritores Angolanos, que revelavam um compromisso sério com a renovação da linguagem literária angolana. Eu, o Lopito, o Joca, o Domingos Ginginha, passámos a frequentar a casa dele. Tinha acabado de publicar o livro: Sinais Misteriosos Já Se…Vê. Aquilo estava muito próximo das respostas que procurávamos. Estamos já em 1983.

A partir de 1984, começam a revelar-se sinais de dissensões internas na Brigada Jovem de Literatura de Luanda, ao mesmo tempo que se organizam grupos e tertúlias literárias à volta de projetos estéticos. As primeiras reuniões dão-se no apartamento do Ruy Duarte de Carvalho, situado na Maianga, Em 22 de Abril de 1984, surge o manifesto do grupo literário Ohandanji: Para uma Nova Fixação Artístico-literário, assinado por mim, foi publicado no Suplemento Cultural Vida & Cultura do Jornal de Angola, numa edição inteiramente preenchida por textos assinados por outros membros. São eles: Ruy Duarte de Carvalho, falecido, autor da vinheta do grupo, uma mó de pedra desenhada a lápis, publicada na capa do Vida & Cultura; Domingos Ginginha falecido; Anibal Simões; António Panguila; Diniz Kakinda; Frederico Ningi; Joca Paixão; Lopito Feijóo. Um ano depois, ao projecto aderiram José António Cebola (Luanda) e Joaquim Limpinho, falecido (Benguela). Américo Gonçalves, o fundador do jornalismo cultural (de imprensa escrita para ser claro) no período pós-independência, enquanto editor do Vida & Cultura, e apoiou sempre os membros do grupo literário Ohandanji.

DC: Quem deu o nome de Ohandanji e porquê?

(LK): Foi no contexto das nossas reuniões no lar universitário e conversas com Ruy Duarte de Carvalho. Lendo o livro «Sinais Misteriosos….Já se Vê….», escolhemos essa imagem para a vinheta, a pedra côncava e a mó de pedra. Resulta da fusão de dois vocábulos em duas línguas nacionais e dois grupos étnicos, Kimbundu e Umbundu: Ohanda e Danji. Assim, traduzia-se a ideia de unidade nacional. Quando o Ruy perguntou como se chamava na minha língua, disse-lhe que era «ohanda».Em nossa casa havia uma «mbamba» para produzir fuba de milho. Por isso, eu conhecia a sua utilidade. Mas faltava o termo em Kimbundu. Então, recomendei que o Lopito consultasse a mãe dele. Assim, veio o outro termo «Ndanji». Daí o «Ohandanji».

Advogado de profissão, escritor, poeta, crítico literário, ex-secretário-geral da UEA, radialista, apresentador de TV, entre outros cargos. E anfitrião deste espaço.

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

This field is required.

This field is required.